terça-feira, 16 de junho de 2015

Ancelma Soares da Silva ou Neusa Sueli

A Plínio Marcos

Meu nome é Neusa Sueli. Na verdade, esse não é o meu nome. O meu nome verdadeiro é Ancelma Soares da Silva. Mas esse não ia soar bem na zona.

A zona é o meu ganha pão, porque é lá que eu consigo o dinheiro pra pagar umas contas, comprar uns trapos, comer e dormir.

Eu sou Neusa Sueli desde que me mudei pra São Paulo, há um tempo, tem uns quinze anos. Antes, morava no interior do estado, região de Capão Bonito. Quando cheguei na região de Francisco Morato, uma garota da casa em que eu morei durante dois anos me falou ‘Se você vai ficar aqui, tem que mudar de nome. ninguém quer comer a Nelma’ – nem sabia meu nome. Eu disse: Ancelma. ‘Pois é, ninguém quer comer uma Ancelma’, ela disse. Daí surgiu na hora a Neusa Sueli.

Antes de vir pra São Paulo, eu morei com minha mãe, meu pai e minha irmã. Família mesmo, só minha irmã. Minha mãe era esquisita, não falava muito e quando alguém falava dela era sempre rindo pelos cantos. Ela até que tentava se arranjar: limpava casa, lavava e passava pros outros. O pai era um safado. Não saía do bar a noite toda, bebia e jogava, depois chegava em casa fedendo e gritando com todo mundo. Quem estivesse na frente levava bordoada na cabeça. Como eu queria matar o desgraçado! Se voltasse lá hoje, e ele estivesse vivo, acho que eu matava o sem vergonha. Ele batia na minha mãe, em mim, na minha irmã sem piedade. Homem é tudo igual.

Meu primeiro sonho na vida, eu realizei. Foi sair de casa. Com quatorze anos, conheci lá nas minha bandas um viado que fazia e arrasava. O danado sabia de tudo que rolava na cidade. Quando eu levei ele lá em casa, o filho da puta do meu pai xingou na cara larga. “Que porra é essa aqui? Agora é casa de galinha e de bichona da rua esse caralho?” É claro que eu defendi o Valtinho. Ele era meu amigo, afinal. A gente rodava a cidade toda noite. Ele me apresentou todos os botecos, os cantos mais escondidos das redondezas. Eu saia com ele sem um puto no bolso e voltava pra casa bebinha. Viadão conhecia todo mundo e dava só pros caras que pagavam. Quando chegava em casa de manhã, fingia que estava já me arrumando pra ir pra escola. O pai porco bêbado e a mãe arrasada de apanhar nem percebiam. Pelo menos, eu dava uma aliviada daquela situação.

Aí, eu comecei a ganhar uns trocados na rua, já que era difícil conseguir qualquer trabalho. Eu precisava comprar roupa pra mim e queria ajudar também a minha irmã, que às vezes lavava roupa dos outros com a minha mãe e nunca tinha nada pra ela. Um dia, um ofereceu uns trocados pra eu pegar no pau dele depois de me olhar um tempão dançando com o Valtinho numa boate que ficava na estrada, perto da saída da cidade. Até então, eu só tinha beijado na boca e pegado por cima da calça dos meninos da escola ou da minha rua. Eu aceitei, porque não tinha dinheiro nem carona pra ir embora naquele dia. Fomos pro carro dele e eu, toda nervosa e um pouco bêbada, dei a minha mão que ele colocou por dentro do zíper que já estava aberto. Depois ele tirou pra fora e continuou fazendo eu pegar. Quando ele me puxou pra por a boca, eu gritei “Peraí, cacete! E o dinheiro, você nem me deu o dinheiro.” Na hora, o porcão tirou do bolso da camisa uma nota de dez reais. Eu peguei a nota, abri a porta do carro e saí correndo pro bar. Chamei o Valtinho e rimos muito esse dia. Ai, começou. 

No outro dia, ele queria que eu colocasse na boca e me deu mais dinheiro. Depois disso, outros caras começaram a pedir também e davam um pouco mais se eu fizesse mais. Quando começaram a me apontar na rua, eu fiquei incomodada, mas na noite seguinte fazia de novo.

Um dia, eu saí sem o meu amigo. A gente estava sempre junto, mas ele não apareceu naquele dia no fim da tarde. Sumiu o dia inteiro. Então, eu pedi mais uma vez ajuda pra minha irmã, pra mentir pra minha mãe, que eu ficaria na casa de uma colega e saí. Fiquei a noite inteira naquela boate, perdi até a noção da bebedeira que eu estava. Consegui carona pra voltar pra casa mais cedo e, chegando lá, entrando pé ante pé, tomei o maior susto quando já na cozinha, ouvi aqueles grunhidos no quarto da mãe. Olhei pela fresta da porta do quarto aberta e vi o velho safado comendo o meu amigo Valtinho que estava de quatro que nem uma cadela. Ele me viu, mas continuou gemendo feito que estava no cio.

Fui pro meu quarto, peguei uma troca de roupa e avisei minha irmã que um dia eu voltava pra buscar ela. A coitada me disse que a mãe tinha fugido; foi dormir na casa de uma conhecida depois de uma surra que o pai havia dado nela.

Morei seis meses perto da boate na saída da cidade, nos fundos da casa do dono da boate. Foi pra ele que eu dei primeiro em troco de abrigo. Nem me lembro direito como foi, acho que foi num daqueles dias que eu nem lembrava de nada. E, depois disso, fui vindo. Então, eu vim pra cá. Uma carona um dia. No outro mais uma. Com dezessete anos eu estava pela região do centro de São Paulo. Morei uns anos com umas putas que me ajudaram assim que eu cheguei a fazer o primeiro aborto. Arrumada num quartinho do centro, com esse cara que eu estou hoje, já tem uns dois anos.


Eu tenho outro sonho ainda na minha vida ainda. O segundo sonho que tenho e ainda vou conseguir, estou tentando realizar. Vou juntar uma grana pra pagar os estudos que eu não terminei e um dia fazer uma faculdade. Quero trazer a minha irmã pra cidade também, mas não é pra ser puta não. É pra trabalhar. Coisa de gente conhecedora mesmo, sabe. Mas não é fácil, também. Sabe como é essa vida: judia muito da gente.